Brasília – O portal jurídico Migalhas publica nesta terça-feira
(25) o artigo “A inconstitucionalidade do crime de desacato sob a perspectiva
da soberania popular”, do diretor-tesoureiro da OAB, Antonio Oneildo Ferreira.
Confira a seguir a íntegra do artigo:
Introdução
Em setembro de 2017, os veículos midiáticos noticiaram que a
ministra Cármen Lúcia, recém-empossada no cargo de presidente do STF, havia
pedido licença para “quebrar o protocolo” em seu discurso de posse: a magistrada
endereçara seus cumprimentos, antes de tudo, não às autoridades ali presentes,
mas àquela a quem aludiu como a autoridade suprema da democracia: “ao cidadão
brasileiro, princípio e fim do Estado, senhor do poder da sociedade
democrática, autoridade suprema sobre todos nós, servidores públicos, em função
do qual há de labutar cada um dos ocupantes dos cargos estatais”1. Sua retórica
sinalizou uma compreensão que há pelo menos um século vem conquistando a adesão
quase unânime dos Estados modernos: a ideia de que todo o poder político emana
do povo.
Viver numa democracia impõe adequar-se a certos padrões.
Colher dela não apenas as vantagens de fruir das liberdades públicas, como
também os desafios (e mesmo os inconvenientes) de evitar a todo custo um modelo
de ordem pública que possa descambar para o autoritarismo. É certo que a vida
em sociedade requer um grau satisfatório de deferência às normas jurídicas e às
instituições por elas criadas e reguladas. Certo, outrossim, que essas mesmas
instituições não estão autorizadas – nos termos dos princípios de um Estado
democrático de direito – a extrapolar um nível moderado ou razoável de
imposição da força a fim de compelir ao cumprimento de suas decisões e ordens.
Inspirada por sua missão político-institucional (e
constitucional) de vigiar os excessos de coerção e as ameaças, mesmo que
cotidianas e sutis, ao regime democrático, a OAB mais uma vez atendeu à
conclamação para defender a cidadania. O Conselho Federal da OAB ajuizou ADPF
com a finalidade de questionar a constitucionalidade do tipo penal de desacato,
inscrito no art. 331 do Código Penal. Pede-se que o referido injusto penal,
decretado em um período ditatorial e impregnado de arbitrariedades, seja posto
afora do âmbito de recepção da Constituição Cidadã de 1988, democrática por
excelência. Os argumentos são fartos: evocam desde princípios constitucionais
positivados (liberdade de expressão, legalidade, republicanismo, igualdade e
Estado democrático de direito) até princípios definidos em normas de direito
internacional (como o direito humano à liberdade de expressão na crítica à
atividade estatal).
Proponho explorar um dos pontos aventados na peça processual
redigida pela OAB, o qual me parece o mais relevante e definitivo para o
reconhecimento da inconstitucionalidade em questão: o princípio estruturante da
soberania do povo (art. 1º, parágrafo único da CF). Com base na leitura
juridicamente adequada e moralmente responsável desse princípio, é forçoso
atestar que a tipificação penal do desacato é inerentemente inconstitucional em
um regime democrático, além de desnecessária e desproporcional. O roteiro de
meu argumento principiará com a (1) posição da OAB no que tange ao atual estado
legislativo e jurisprudencial do crime de desacato no Brasil; prosseguirá com
uma (2) discussão teórica da ideia regulativa de soberania do povo; até
desaguar, à guisa de considerações finais, em (3) apontamentos sobre o papel
dos agentes públicos no Estado democrático de direito, a partir dos quais será
possível julgar, finalmente, o quanto de absurdo há na referida tipificação
penal.
1. OAB contesta o tipo penal de desacato
O primeiro passo para contestar a adequação constitucional
do tipo penal incriminador de desacato fora dado pelo STF, quando sua quinta
turma assentou, em dezembro de 2016, a contrariedade dessa norma às convenções
internacionais de direitos humanos. Para o relator do caso, ministro Ribeiro
Dantas, “a criminalização do desacato está na contramão do humanismo porque
ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o
indivíduo”.2 A hierarquia entre agentes públicos e particulares, portanto, está
em flagrante descompasso com a ordem democrática inaugurada em 1988 – a qual
alberga, em caráter supralegal ou de emenda constitucional, normas
internacionais de direitos humanos das quais o Brasil venha a ser signatário.
Considerou-se que a penalização do desacato, na prática, equivale a um
cerceamento da liberdade de expressão em uma de suas dimensões mais relevantes,
ao contribuir para silenciar ideias e opiniões que questionem e critiquem o
modus operandi e o status quo da atividade pública.
A mesma Corte que havia avançado sobremaneira, todavia,
cedeu ao retrocesso. A terceira seção (órgão colegiado encarregado de
uniformizar o entendimento do STJ em matérias de direito penal, que inclui,
além da quinta, também a sexta turma) definiu que a conduta de desacato
continua a ser criminalizada. Segundo o ministro Antonio Saldanha Palheiro,
autor do voto vencedor3 no julgamento HC 379.269 do/MS, tal tipificação não
obstrui a liberdade de expressão, pois não impede manifestações feitas pelo
cidadão com “civilidade e educação”, ao mesmo tempo em que resguarda o agente
público de possíveis “ofensas sem limites”4. Mais recentemente (março de 2018),
a 2ª turma do STF, ao julgar HC, prolatou decisão que infelizmente ratifica a
mesma tendência.5
A OAB, inconformada com a involução verificada, propôs ação
de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 496/DF, distribuída ao ministro
Luís Roberto Barroso) perante o STF, requerendo o reconhecimento com efeitos
erga omnes da não-recepção do art. 331 do Código Penal (in verbis: “Desacatar
funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção,
de seis meses a dois anos, ou multa”), devido a sua incompatibilidade com os
preceitos previstos pela Constituição Federal vigente. A ação foi motivada
sobretudo pela intimidação que esse tipo penal inflige à advocacia, que fica
constrangida em sua atuação contra ilegalidades perpetradas por agentes
públicos. “A advocacia acaba muitas vezes sendo tolhida do direito de atuar
plenamente na defesa de seus constituintes sob a ameaça de ter sua atuação
considerada criminosa injustamente”, esclareceu o presidente da Entidade,
Claudio Lamachia.6 Recente episódio paradigmático foi a abusiva, vexatória e
truculenta prisão do advogado Sávio Delano, efetuada pela Polícia Militar do
Estado de Pernambuco em Caruaru, por alegado crime de desacato por parte de
profissional em pleno exercício da atividade profissional da advocacia.7
Afinal, a instituição que porta natureza contramajoritária,
encarregada de defender os cidadãos ante o arbítrio do Estado-Leviatã, não pode
ver-se acossada pela admoestação espúria de um tipo penal. Ao representar seu
cliente face às autoridades, a advogada ou o advogado necessita de plena
liberdade de expressão, inadmissível qualquer censura ou represália
institucionalizada. Até porque a criminalização do desacato pode ser vista,
indiretamente, como um prolongamento de uma espécie de “criminalização da
advocacia”. Considerando que, em parte significativa dos casos, o múnus público
da advocacia confunde-se justamente com o questionamento das autoridades
públicas, é válido dizer que estamos aí adentrando o âmbito da liberdade de
exercício profissional. De outra óptica, o cidadão vê-se impedido de fiscalizar
e escrutinar, por si mesmo, o desenvolvimento da atividade pública pelo
servidor.
A petição promovida pela OAB concentrou-se em três frentes:
i) o argumento da liberdade de expressão, ii) o argumento da legalidade e iii)
o argumento republicano ou do Estado democrático de direito, relacionado
umbilicalmente ao princípio da igualdade.
i) A norma do art. 331 do CP confronta a liberdade de
expressão antevista no art. 5º, IX c/c art. 220, § 2º da CF, garantia contrária
a qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística; bem como o
art. 13 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que tutela a liberdade
de pensamento e de expressão.8 E deve-se considerar que o STF tem uma longa e
notável tradição jurisprudencial em favor da liberdade de expressão.9 Consta da
petição da OAB o argumento de que deve haver uma maior “tolerância” às
manifestações emitidas por indivíduos no exercício do controle democrático das
condutas dos agentes públicos: “O temor de sanções penais necessariamente
desencoraja os cidadãos de expressar suas opiniões sobre problemas de interesse
público, em especial quando a legislação não distingue entre os fatos e os
juízos de valor”.10
ii) Problema correlato refere-se ao princípio da legalidade,
corporificado no direito penal primordialmente no princípio da taxatividade da
lei penal. O verbo nuclear da ação típica – “desacatar” – é por demais
semântica e juridicamente aberto e indefinido, fato gerador de dificuldades
hermenêuticas para os julgadores e, por conseguinte, pretextos para
arbitrariedades e desmandos por parte de agentes públicos inescrupulosos. Então
o crime de desacato não raro apenas camufla a “imposição abusiva do poder
punitivo estatal”. Os cidadãos restam, assim, completamente despidos da
segurança jurídica imprescindível para um Estado democrático de direito
saudável.
iii) Finalmente, a norma sob exame viola os pressupostos do
Estado democrático de direito que apontam na direção do princípio republicano
(art. 1º, caput, e seu parágrafo único). Na República Federativa do Brasil,
“todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. O republicanismo distingue-se de
seu antípoda, a monarquia, na medida em que prescreve o autogoverno como
fundamento inatacável do poder político: na república, o povo obedece somente
às leis que estatui para si mesmo, sendo ao mesmo tempo soberano e súdito,
autor e destinatário. Essa é a condição de legitimidade (e de possibilidade) de
um Estado democrático. É inconcebível que um Estado seja democrático se sua
autoridade não derivar, em última instância, ainda que de uma forma mediata (e
mediada), da soberania popular.
Entre as várias emanações do princípio republicano,
encontra-se a exigência de que as autoridades públicas se submetam, dentro das
regras e dos princípios esboçados pelo direito, à autoridade última e
irredutível dos cidadãos. Expressão dessa circunstância é a submissão das
instituições e de seus respectivos servidores ao controle e à fiscalização do
conjunto dos titulares do poder político: a sociedade. Em vista disso se
assegura a igualdade política de todos os cidadãos perante a lei, em seu
sentido formal (art. 5º, caput, da CF), donde são vedados privilégios ancorados
em posições sociais, inclusive em posições que distinguem agentes públicos de
privados. Não há distinção possível entre funcionários públicos e cidadãos
particulares para fins de exercício dos direitos, sendo as distinções entre
eles tão somente funcionais, mas nunca de hierarquia ou de privilégios –
categorias de todo abolidas pelos regimes democráticos.
A aplicação de uma norma como o crime de desacato debilita a
responsabilidade das autoridades públicas de prestar contas e dar informações
em benefício dos cidadãos, e enfraquece a prerrogativa destes de fiscalizar e
exercer controle sobre as atividades do Estado. A respeito da distinção
hierárquica subjacente a esse tipo penal, a OAB manifesta em sua petição:
Essa distinção
inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz
com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da
cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo.
Considerando-se que os funcionários públicos que atuam em caráter oficial são,
para todos os efeitos, o governo, então é precisamente um direito dos
indivíduos e da cidadania criticar e perscrutar as ações e atitudes desses
funcionários no que diz respeito à função pública.11
Gostaria de enfatizar este aspecto do pedido da OAB: o
fundamento da soberania popular. Parece-me, em verdade, que a liberdade de
expressão no que concerne ao escrutínio e à crítica dos atos públicos é uma
derivação direta do princípio republicano, isto é, do princípio de que toda a
autoridade do Estado advém inexorável e exclusivamente do povo soberano.
Deter-me-ei neste ponto.
Clique aqui para acessar a íntegra do artigo
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1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Fala da posse na presidência do
STF”. clique aqui. Acesso em 01 de fev. de 2018.
2 MARANHÃO, Fabiana. “STJ decide que desacato a autoridade
não é mais crime”. Notícias UOL. clique aqui. Acesso em 19 de dez. de 2017.
3 Votaram também nesse sentido, compondo a maioria, os
ministros Felix Fischer, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi, Rogerio
Schietti e Nefi Cordeiro.
4 MUNIZ, Mariana. “Desacato continua a ser crime, diz STJ”.
5 O Relator do pedido de HC, ministro Gilmar Mendes,
considera que a tutela penal ao desacato visa a assegurar o normal
funcionamento do Estado, ao proteger o prestígio da função pública. Não haveria
afronta ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, pois a liberdade
de expressão não teria caráter absoluto. Foi seguido pelos ministros Dias
Toffoli e Ricardo Lewandowski. Ausente o Decano Celso de Mello, o ministro
Edson Fachin foi o único a divergir. Conferir. “Palavra punida: Em pedido de
HC, 2ª turma do STF diz que crime de desacato é constitucional”.
6 CONSELHO FEDERAL DA OAB. “OAB ingressa no STF para
extinguir a eficácia do crime de desacato”. clique aqui. Acesso em 19 de dez.
de 2017.
7 Ibidem: “OAB Nacional requer providência ao governo de
Pernambuco por prisão arbitrária de advogado”. clique aqui. Acesso em 10 de
jul. de 2018. Ao realizar prisão de advogado por crime de menor potencial
ofensivo e sem a presença de representante da OAB, as autoridades policiais
violaram as prerrogativas do art. 7º, inc. IV e § 3º do Estatuto da Advocacia e
da OAB (Lei 8.906/94).
8 “1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de
expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir
informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras,
verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer
outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso
precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades
ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para
assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b.
a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral
públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios
indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de
imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados
na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a
comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os
espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o
acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo
do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da
guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
In: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (assinada na Conferência
Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em
22 de novembro de 1969).
9 O STF reconheceu a inconstitucionalidade de diversas
normas jurídicas com arrimo na liberdade de expressão, como, por exemplo: (i)
ADPF 130, que firmou a não-recepção da Lei de Imprensa (Lei n. 5250/67) pela
Constituição de 1988; (ii) ADPF 187, em que se atribuiu ao art. 287 do Código
Penal interpretação conforme à Constituição, não impedindo manifestações
públicas em defesa da legalização das drogas; e (iii) ADI 4815, que declarou
inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias.
10 CONSELHO FEDERAL DA OAB. “ADPF 496”. In: SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL. clique aqui. Acesso em 11 de jan. de 2018.
11 Ibid.