Presidente da OAB alerta para a defasagem da legislação agrária em simpósio no STJ

Brasília – O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, participou na manhã desta quarta-feira (26) da abertura do simpósio ‘O Agronegócio na Interpretação do Superior Tribunal de Justiça’, realizado no auditório do STJ. O Membro Honorário Vitalício do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, foi um dos coordenadores científicos do evento.

Lamachia compôs a mesa inaugural da solenidade ao lado do corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins; do ministro Moura Ribeiro, do STJ; do embaixador da República Popular da China, Li Jinzhang; do presidente da Comissão de Direito Agrário e Urbanismo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Frederico Price Grechi; e da vice-presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Erika Branco.

Em seu discurso, Lamachia ressaltou a relevância primordial do agronegócio para o avanço econômico, social e jurídico do País. “Tratar do agronegócio significa refletir, direta ou indiretamente, acerca de uma ampla gama de assuntos correlatos, incluindo política externa e comércio exterior; legislação ambiental e trabalhista; desafios atinentes à questão fundiária; direito empresarial e recuperação judicial – entre muitas outras matérias de imensurável alcance. 

Ele destacou, ainda, que no Brasil a importância do tema é ainda mais notável em virtude do lugar proeminente ocupado pelo agronegócio na economia nacional. “Não obstante a defasagem de nossa legislação agrária, a precariedade de nossa infraestrutura e as deficiências de nosso sistema tributário, o setor afirmou-se como um dos mais eficientes do mundo”, ponderou. (Leia a íntegra do discurso ao final da matéria)

O corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, destacou que “o STJ tem papel determinante na segmentação de formação da jurisprudência acerca do agronegócio, setor mais pujante e que hoje é o sustentáculo da economia nacional, de modo que possibilite relações cada vez melhores entre as pessoas físicas e as empresas que atuam no meio”. 

Li Jinzhang, embaixador chinês no Brasil, também falou na abertura. “Temos um ditado na China que diz que a agricultura é a base do Estado, portanto falar sobre agronegócio na atual circunstância internacional tem um significado especial. China e Brasil são signatários de um acordo amplamente proveitoso, já que o meu país é o primeiro no ranking de consumo mundial de produtos agrícolas, enquanto o Brasil – celeiro do mundo no século XXI – é um dos maiores produtores. Somente em 2017, o Brasil embarcou 23 milhões de dólares para a China em produtos agrícolas e exportou mais de 50 milhões de toneladas de soja”, apontou.

---

Veja abaixo a íntegra do discurso do presidente Claudio Lamachia na solenidade.

Senhoras e senhores.

Em nome da advocacia brasileira, agradeço o convite para participar deste simpósio, O Agronegócio na Interpretação do STJ, que ratifica o compromisso do Superior Tribunal de Justiça com o pluralismo democrático e com o contínuo aprimoramento da prestação jurisdicional no Brasil.

O tema de que nos ocupamos esta manhã tem relevância primordial para o avanço econômico, social e jurídico do País, com implicações sobre diversos ramos do Direito e sobre inúmeros aspectos da atuação estatal e da vida dos cidadãos.

Com efeito, tratar do agronegócio significa refletir, direta ou indiretamente, acerca de uma ampla gama de assuntos correlatos, incluindo política externa e comércio exterior; legislação ambiental e trabalhista; desafios atinentes à questão fundiária; direito empresarial e recuperação judicial – entre muitas outras matérias de imensurável alcance.

No caso brasileiro, a importância do tema é ainda mais notável, em virtude do lugar proeminente ocupado pelo agronegócio na economia nacional.

Segundo estimativa da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, o setor teve participação de cerca de 23% no total do PIB, em 2017.

No mesmo ano, conforme dados do IBGE, o agronegócio expandiu 13%, tendo sido, portanto, um dos grandes responsáveis pela retomada do crescimento econômico, que foi de 1% no período.

Quando olhamos para nossas contas externas, é também incontestável a importância do setor, cujas exportações somaram 96 bilhões de dólares em 2017, contribuindo substancialmente para o superávit de nossa balança comercial (67 bilhões de dólares – o maior em 29 anos).

Com efeito, o agronegócio brasileiro destaca-se internacionalmente, atingindo níveis de excelência técnica e empresarial que deveriam ser replicados em outros ramos produtivos.

Afinal, não obstante a defasagem de nossa legislação agrária, a precariedade de nossa infraestrutura e as deficiências de nosso sistema tributário, o setor afirmou-se como um dos mais eficientes do mundo.

Para que isso tenha sido possível, foi e continua sendo imprescindível a garantia da segurança jurídica para produtores, trabalhadores, distribuidores e demais agentes do setor.

Em momentos turbulentos como o que temos atravessado atualmente no Brasil, a missão estabilizadora desempenhada pelas instituições revela-se ainda mais necessária.

Essa constatação reforça a inestimável relevância da atuação do Superior Tribunal de Justiça, cujos membros são encarregados da nobilitante tarefa de uniformizar a interpretação das leis federais e fornecer à sociedade a adequada prestação jurisdicional.

No desempenho dessa honrosa função pública, esta Corte – merecidamente designada como o Tribunal da Cidadania – tem enfrentado, com sabedoria e coerência, numerosas questões atinentes ao agronegócio.

Desse modo, assegura a confiança social e a previsibilidade necessárias ao empreendimento nos setores produtivos, bem como a quaisquer avanços materiais, políticos ou humanos.

Ao longo dos últimos anos, o STJ lidou com matérias de grande repercussão e complexidade, como propriedade intelectual no campo e uso de sementes transgênicas; estabelecimento de preço de produtos agrícolas; acesso à terra e implicações do arrendamento e da parceria rural; entre muitas outras.

Nessas, como em todas as demais questões trazidas a esta Casa, os Ministros do STJ têm atuado com rigor e independência, promovendo o respeito às normas positivadas e à prevalência do interesse coletivo.

Ao mesmo tempo, como evidenciado por este simpósio, não se furtam a dialogar com a sociedade civil, incentivando a produção de conhecimento, ouvindo análises de especialistas e divulgando, de maneira democrática e transparente, o consistente trabalho jurisprudencial realizado na Corte.

Muito obrigado.


“O Brasil precisa de um pacto de respeito com a Constituição e a democracia”, afirma Lamachia

Goiânia (GO) – O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, proferiu nesta terça-feira (25) a palestra magna de encerramento do Congresso 30 anos da Constituição. Na ocasião ele instigou a advocacia goiana a ser protagonista da defesa da Constituição Federal, da democracia e do combate à apologia do ódio e ao extremismo.

“Jamais imaginei que fosse chegar à presidência nacional da OAB, ainda mais em um momento tão turbulento do país, um momento em que a OAB tem sido chamada a participar de debates em uma sociedade absolutamente dividida”.

Lamachia reforçou que o combate ao crime, à corrupção e às más práticas da política brasileira deve ser feito em respeito à legislação, ao devido processo legal, à presunção de inocência. Disse ainda que a advocacia, considerando seu papel de defesa da cidadania e do Estado Democrático de Direito, deve estar na linha de frente.

“A OAB tem que ser utilizada para o enfrentamento correto e independente. O Brasil precisa realizar um pacto de respeito com o texto constitucional e a democracia porque voto não tem preço, tem consequência e a consequência de escolhas mal feitas é essa crise ética e moral que estamos vivendo”.

Ele concluiu conclamando uma reflexão sobre a responsabilidade acerca do poder-dever do voto consciente “para a eleição que se aproxima e é a mais polarizada desde a redemocratização”. “Sem advocacia não há liberdade e sem liberdade não há democracia”.

Papel constitucional da OAB

O presidente Lúcio Flávio de Paiva alertou sobre a ameaça que o ativismo judicial representa à democracia. “O ativismo judicial fere a democracia”. Lúcio reforçou também o papel constitucional da OAB para a garantia do pleno Estado Democrático de Direito. “Quando o céu ficar nebuloso a primeira instituição a ser chamada para defender a cidadania é a Ordem dos Advogados do Brasil e a advocacia”, concluiu.

A inconstitucionalidade do crime de desacato sob a perspectiva da soberania popular

Brasília – O portal jurídico Migalhas publica nesta terça-feira (25) o artigo “A inconstitucionalidade do crime de desacato sob a perspectiva da soberania popular”, do diretor-tesoureiro da OAB, Antonio Oneildo Ferreira. Confira a seguir a íntegra do artigo:

Introdução

Em setembro de 2017, os veículos midiáticos noticiaram que a ministra Cármen Lúcia, recém-empossada no cargo de presidente do STF, havia pedido licença para “quebrar o protocolo” em seu discurso de posse: a magistrada endereçara seus cumprimentos, antes de tudo, não às autoridades ali presentes, mas àquela a quem aludiu como a autoridade suprema da democracia: “ao cidadão brasileiro, princípio e fim do Estado, senhor do poder da sociedade democrática, autoridade suprema sobre todos nós, servidores públicos, em função do qual há de labutar cada um dos ocupantes dos cargos estatais”1. Sua retórica sinalizou uma compreensão que há pelo menos um século vem conquistando a adesão quase unânime dos Estados modernos: a ideia de que todo o poder político emana do povo.

Viver numa democracia impõe adequar-se a certos padrões. Colher dela não apenas as vantagens de fruir das liberdades públicas, como também os desafios (e mesmo os inconvenientes) de evitar a todo custo um modelo de ordem pública que possa descambar para o autoritarismo. É certo que a vida em sociedade requer um grau satisfatório de deferência às normas jurídicas e às instituições por elas criadas e reguladas. Certo, outrossim, que essas mesmas instituições não estão autorizadas – nos termos dos princípios de um Estado democrático de direito – a extrapolar um nível moderado ou razoável de imposição da força a fim de compelir ao cumprimento de suas decisões e ordens.

Inspirada por sua missão político-institucional (e constitucional) de vigiar os excessos de coerção e as ameaças, mesmo que cotidianas e sutis, ao regime democrático, a OAB mais uma vez atendeu à conclamação para defender a cidadania. O Conselho Federal da OAB ajuizou ADPF com a finalidade de questionar a constitucionalidade do tipo penal de desacato, inscrito no art. 331 do Código Penal. Pede-se que o referido injusto penal, decretado em um período ditatorial e impregnado de arbitrariedades, seja posto afora do âmbito de recepção da Constituição Cidadã de 1988, democrática por excelência. Os argumentos são fartos: evocam desde princípios constitucionais positivados (liberdade de expressão, legalidade, republicanismo, igualdade e Estado democrático de direito) até princípios definidos em normas de direito internacional (como o direito humano à liberdade de expressão na crítica à atividade estatal).

Proponho explorar um dos pontos aventados na peça processual redigida pela OAB, o qual me parece o mais relevante e definitivo para o reconhecimento da inconstitucionalidade em questão: o princípio estruturante da soberania do povo (art. 1º, parágrafo único da CF). Com base na leitura juridicamente adequada e moralmente responsável desse princípio, é forçoso atestar que a tipificação penal do desacato é inerentemente inconstitucional em um regime democrático, além de desnecessária e desproporcional. O roteiro de meu argumento principiará com a (1) posição da OAB no que tange ao atual estado legislativo e jurisprudencial do crime de desacato no Brasil; prosseguirá com uma (2) discussão teórica da ideia regulativa de soberania do povo; até desaguar, à guisa de considerações finais, em (3) apontamentos sobre o papel dos agentes públicos no Estado democrático de direito, a partir dos quais será possível julgar, finalmente, o quanto de absurdo há na referida tipificação penal.

1. OAB contesta o tipo penal de desacato

O primeiro passo para contestar a adequação constitucional do tipo penal incriminador de desacato fora dado pelo STF, quando sua quinta turma assentou, em dezembro de 2016, a contrariedade dessa norma às convenções internacionais de direitos humanos. Para o relator do caso, ministro Ribeiro Dantas, “a criminalização do desacato está na contramão do humanismo porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo”.2 A hierarquia entre agentes públicos e particulares, portanto, está em flagrante descompasso com a ordem democrática inaugurada em 1988 – a qual alberga, em caráter supralegal ou de emenda constitucional, normas internacionais de direitos humanos das quais o Brasil venha a ser signatário. Considerou-se que a penalização do desacato, na prática, equivale a um cerceamento da liberdade de expressão em uma de suas dimensões mais relevantes, ao contribuir para silenciar ideias e opiniões que questionem e critiquem o modus operandi e o status quo da atividade pública.

A mesma Corte que havia avançado sobremaneira, todavia, cedeu ao retrocesso. A terceira seção (órgão colegiado encarregado de uniformizar o entendimento do STJ em matérias de direito penal, que inclui, além da quinta, também a sexta turma) definiu que a conduta de desacato continua a ser criminalizada. Segundo o ministro Antonio Saldanha Palheiro, autor do voto vencedor3 no julgamento HC 379.269 do/MS, tal tipificação não obstrui a liberdade de expressão, pois não impede manifestações feitas pelo cidadão com “civilidade e educação”, ao mesmo tempo em que resguarda o agente público de possíveis “ofensas sem limites”4. Mais recentemente (março de 2018), a 2ª turma do STF, ao julgar HC, prolatou decisão que infelizmente ratifica a mesma tendência.5

A OAB, inconformada com a involução verificada, propôs ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 496/DF, distribuída ao ministro Luís Roberto Barroso) perante o STF, requerendo o reconhecimento com efeitos erga omnes da não-recepção do art. 331 do Código Penal (in verbis: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”), devido a sua incompatibilidade com os preceitos previstos pela Constituição Federal vigente. A ação foi motivada sobretudo pela intimidação que esse tipo penal inflige à advocacia, que fica constrangida em sua atuação contra ilegalidades perpetradas por agentes públicos. “A advocacia acaba muitas vezes sendo tolhida do direito de atuar plenamente na defesa de seus constituintes sob a ameaça de ter sua atuação considerada criminosa injustamente”, esclareceu o presidente da Entidade, Claudio Lamachia.6 Recente episódio paradigmático foi a abusiva, vexatória e truculenta prisão do advogado Sávio Delano, efetuada pela Polícia Militar do Estado de Pernambuco em Caruaru, por alegado crime de desacato por parte de profissional em pleno exercício da atividade profissional da advocacia.7

Afinal, a instituição que porta natureza contramajoritária, encarregada de defender os cidadãos ante o arbítrio do Estado-Leviatã, não pode ver-se acossada pela admoestação espúria de um tipo penal. Ao representar seu cliente face às autoridades, a advogada ou o advogado necessita de plena liberdade de expressão, inadmissível qualquer censura ou represália institucionalizada. Até porque a criminalização do desacato pode ser vista, indiretamente, como um prolongamento de uma espécie de “criminalização da advocacia”. Considerando que, em parte significativa dos casos, o múnus público da advocacia confunde-se justamente com o questionamento das autoridades públicas, é válido dizer que estamos aí adentrando o âmbito da liberdade de exercício profissional. De outra óptica, o cidadão vê-se impedido de fiscalizar e escrutinar, por si mesmo, o desenvolvimento da atividade pública pelo servidor.

A petição promovida pela OAB concentrou-se em três frentes: i) o argumento da liberdade de expressão, ii) o argumento da legalidade e iii) o argumento republicano ou do Estado democrático de direito, relacionado umbilicalmente ao princípio da igualdade.

i) A norma do art. 331 do CP confronta a liberdade de expressão antevista no art. 5º, IX c/c art. 220, § 2º da CF, garantia contrária a qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística; bem como o art. 13 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que tutela a liberdade de pensamento e de expressão.8 E deve-se considerar que o STF tem uma longa e notável tradição jurisprudencial em favor da liberdade de expressão.9 Consta da petição da OAB o argumento de que deve haver uma maior “tolerância” às manifestações emitidas por indivíduos no exercício do controle democrático das condutas dos agentes públicos: “O temor de sanções penais necessariamente desencoraja os cidadãos de expressar suas opiniões sobre problemas de interesse público, em especial quando a legislação não distingue entre os fatos e os juízos de valor”.10

ii) Problema correlato refere-se ao princípio da legalidade, corporificado no direito penal primordialmente no princípio da taxatividade da lei penal. O verbo nuclear da ação típica – “desacatar” – é por demais semântica e juridicamente aberto e indefinido, fato gerador de dificuldades hermenêuticas para os julgadores e, por conseguinte, pretextos para arbitrariedades e desmandos por parte de agentes públicos inescrupulosos. Então o crime de desacato não raro apenas camufla a “imposição abusiva do poder punitivo estatal”. Os cidadãos restam, assim, completamente despidos da segurança jurídica imprescindível para um Estado democrático de direito saudável.

iii) Finalmente, a norma sob exame viola os pressupostos do Estado democrático de direito que apontam na direção do princípio republicano (art. 1º, caput, e seu parágrafo único). Na República Federativa do Brasil, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O republicanismo distingue-se de seu antípoda, a monarquia, na medida em que prescreve o autogoverno como fundamento inatacável do poder político: na república, o povo obedece somente às leis que estatui para si mesmo, sendo ao mesmo tempo soberano e súdito, autor e destinatário. Essa é a condição de legitimidade (e de possibilidade) de um Estado democrático. É inconcebível que um Estado seja democrático se sua autoridade não derivar, em última instância, ainda que de uma forma mediata (e mediada), da soberania popular.

Entre as várias emanações do princípio republicano, encontra-se a exigência de que as autoridades públicas se submetam, dentro das regras e dos princípios esboçados pelo direito, à autoridade última e irredutível dos cidadãos. Expressão dessa circunstância é a submissão das instituições e de seus respectivos servidores ao controle e à fiscalização do conjunto dos titulares do poder político: a sociedade. Em vista disso se assegura a igualdade política de todos os cidadãos perante a lei, em seu sentido formal (art. 5º, caput, da CF), donde são vedados privilégios ancorados em posições sociais, inclusive em posições que distinguem agentes públicos de privados. Não há distinção possível entre funcionários públicos e cidadãos particulares para fins de exercício dos direitos, sendo as distinções entre eles tão somente funcionais, mas nunca de hierarquia ou de privilégios – categorias de todo abolidas pelos regimes democráticos.

A aplicação de uma norma como o crime de desacato debilita a responsabilidade das autoridades públicas de prestar contas e dar informações em benefício dos cidadãos, e enfraquece a prerrogativa destes de fiscalizar e exercer controle sobre as atividades do Estado. A respeito da distinção hierárquica subjacente a esse tipo penal, a OAB manifesta em sua petição:

Essa distinção inverte diretamente o princípio fundamental de um sistema democrático, que faz com que o governo seja objeto de controles, entre eles, o escrutínio da cidadania, para prevenir ou controlar o abuso de seu poder coativo. Considerando-se que os funcionários públicos que atuam em caráter oficial são, para todos os efeitos, o governo, então é precisamente um direito dos indivíduos e da cidadania criticar e perscrutar as ações e atitudes desses funcionários no que diz respeito à função pública.11

Gostaria de enfatizar este aspecto do pedido da OAB: o fundamento da soberania popular. Parece-me, em verdade, que a liberdade de expressão no que concerne ao escrutínio e à crítica dos atos públicos é uma derivação direta do princípio republicano, isto é, do princípio de que toda a autoridade do Estado advém inexorável e exclusivamente do povo soberano. Deter-me-ei neste ponto.

Clique aqui para acessar a íntegra do artigo

_________________

1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Fala da posse na presidência do STF”. clique aqui. Acesso em 01 de fev. de 2018.

2 MARANHÃO, Fabiana. “STJ decide que desacato a autoridade não é mais crime”. Notícias UOL. clique aqui. Acesso em 19 de dez. de 2017.

3 Votaram também nesse sentido, compondo a maioria, os ministros Felix Fischer, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi, Rogerio Schietti e Nefi Cordeiro.

4 MUNIZ, Mariana. “Desacato continua a ser crime, diz STJ”.

5 O Relator do pedido de HC, ministro Gilmar Mendes, considera que a tutela penal ao desacato visa a assegurar o normal funcionamento do Estado, ao proteger o prestígio da função pública. Não haveria afronta ao art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, pois a liberdade de expressão não teria caráter absoluto. Foi seguido pelos ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Ausente o Decano Celso de Mello, o ministro Edson Fachin foi o único a divergir. Conferir. “Palavra punida: Em pedido de HC, 2ª turma do STF diz que crime de desacato é constitucional”.

6 CONSELHO FEDERAL DA OAB. “OAB ingressa no STF para extinguir a eficácia do crime de desacato”. clique aqui. Acesso em 19 de dez. de 2017.

7 Ibidem: “OAB Nacional requer providência ao governo de Pernambuco por prisão arbitrária de advogado”. clique aqui. Acesso em 10 de jul. de 2018. Ao realizar prisão de advogado por crime de menor potencial ofensivo e sem a presença de representante da OAB, as autoridades policiais violaram as prerrogativas do art. 7º, inc. IV e § 3º do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/94).

8 “1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”. In: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969).

9 O STF reconheceu a inconstitucionalidade de diversas normas jurídicas com arrimo na liberdade de expressão, como, por exemplo: (i) ADPF 130, que firmou a não-recepção da Lei de Imprensa (Lei n. 5250/67) pela Constituição de 1988; (ii) ADPF 187, em que se atribuiu ao art. 287 do Código Penal interpretação conforme à Constituição, não impedindo manifestações públicas em defesa da legalização das drogas; e (iii) ADI 4815, que declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias.

10 CONSELHO FEDERAL DA OAB. “ADPF 496”. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. clique aqui. Acesso em 11 de jan. de 2018.

11 Ibid.

Aberto na OAB Paraná fórum que discute gargalos do ensino jurídico

O surgimento indiscriminado de novos cursos de Direito foi o tema central da sessão de abertura do Fórum Nacional de Educação Jurídica – Região Sul, aberto nesta terça-feira (25) na sede da OAB Paraná. Organizado pelo Conselho Federal da OAB, por intermédio da Comissão Nacional de Educação Jurídica e pelo Conselho Seccional da OAB Paraná, o fórum teve como finalidade abordar diversos temas sobre o ensino jurídico brasileiro contemporâneo.

Números apurados pela Comissão Nacional apontam o surgimento de 201 novos cursos de Direito em 2018, com quase 30 mil novas vagas ofertadas. Desse total, 32 novos cursos surgiram na Região Sul do Brasil, metade deles no Paraná. O Brasil conta hoje com mais de 1,1 milhão de advogados e com mais de 3 milhões de estudantes de Direito. Ainda assim, o índice de vagas ociosas nos novos cursos chega a 47%, fator apontado como mais um indicador de que há cursos em demasia. Para os debatedores, mais do que a quantidade, é a qualidade do ensino jurídico que preocupa. Foram citados exemplos do desapreço aos pareceres técnicos solicitados à OAB, em prática semelhante ao que ocorre também com outros órgãos de representação de classe, como os Conselhos Regionais de Medicina.

A comissão trabalha na formulação de critérios que serão utilizados para utilizados para a emissão do selo OAB. A lista dos cursos avalizados deve ser divulgada até 20 de dezembro. Entre os aspectos em análise estão as notas obtidas pelo curso nos rankings do MEC, o desempenho da instituição no Exame de Ordem e o total de mestres e doutores com dedicação de tempo integral ao ensino.

Os cursos de técnicos e tecnólogos, que não obtiveram chancela da OAB, também estiveram em debate, assim como os cursos de ensino à distância (EAD). Há 468 pedidos de abertura de cursos aguardando o aval do MEC ainda para este ano. Desse total, 49 referem-se a cursos de ensino à distância. A OAB ingressou com ação civil pública para contestar o caráter de “formação jurídica” nessas modalidades de ensino.

Histórico

Entre janeiro e setembro de 2018, o Ministério da Educação autorizou a abertura de 200 novos cursos de Direito no Brasil, com aproximadamente 28 mil vagas. De acordo com o sistema E-MEC, outros 468 pedidos aguardam manifestação e análise, e 49 solicitações de cursos na modalidade à distância aguardam avaliação. Nesta última modalidade ainda não existe nenhum curso autorizado pelo MEC no Brasil.

O Paraná é o estado da Região Sul com mais cursos criados desde o começo do ano. Foram autorizados 16 novos cursos, com a oferta de 1.740 vagas – o dobro dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nestes estados foram criados 16 novos cursos, oito em cada um.  No cenário nacional, Minas Gerais é o estado com mais cursos criados: 31 no total. Na sequência, estão os estados de São Paulo (27) e Bahia (21). O Paraná ocupa a 4ª posição.

Os números da criação desenfreada de cursos direito chamam a atenção e têm sido foco de manifestações e pareceres emitidos pelo Conselho Federal da OAB e pela Seccional paranaense.

O presidente da seccional, José Augusto Araújo de Noronha, frisa que debater o ensino jurídico é obrigação da OAB e que o evento vem em boa hora. “A abertura de cursos de direito de forma indiscriminada, sem relação com a necessidade do mercado e com a própria qualidade do ensino jurídico oferecido, gerará milhares de bacharéis que não terão êxito no mercado de trabalho, no futuro próximo. O MEC deveria ouvir a OAB PR e suspender por 10 anos a abertura de novos cursos jurídicos no Brasil. Estamos beirando os 900.000 estudantes de direito o que mostra a preocupação que todos devemos ter com o futuro profissional de jovens que possuem sonhos e que podem não ser concretizados”, defendeu.

Precariedade

“O CFOAB, a OAB Paraná e as demais seccionais iniciaram um combate contra a abertura indiscriminada de cursos de graduação em Direito em todo o país. Chama a atenção a precariedade dos cursos e a forma de avaliação: o MEC vem concedendo a autorização desses cursos baseando-se apenas nos instrumentos de avaliação criados por ele via INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e num padrão decisório estabelecido por ele, criando, assim, um direito líquido incerto para as instituições”, frisa o advogado Tarcizo Roberto Nascimento, gerente de assessoramento das Comissões do Conselho Federal da OAB.

Segundo Nascimento, o Conselho Federal vem emitindo pareceres contrários à abertura de cursos, fundamentados em falhas extremamente graves, bem como na necessidade social inserida na Instrução Normativa 01/2008. “Existem localidades com menos de 20 mil habitantes, para uma oferta de um curso de graduação de direito, sem nenhuma estrutura do judiciário capaz de receber os futuros estudantes em estágios, e os egressos em profissões do mundo jurídico, criando uma verdadeira farsa do ensino”, lembra.

“Confirme menciona o presidente da Comissão Nacional de Educação Jurídica, Marisvaldo Amado, o Brasil será conhecido por um oceano de cursos jurídicos com um palmo de qualidade. Esta proliferação está chegando ao nível dos pedidos de cursos à distância, entretanto, o MEC não consegue fiscalizar ou fechar cursos de péssima qualidade no país. Não existe, até o momento, um encerramento das atividades educacionais de cursos de baixa qualidade no mesmo período de abertura, o que demonstra uma falha”, pondera Nascimento.

O presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB Paraná, Rodrigo Sánchez Rios, fez a apresentação do tema sobre os cursos tecnológicos. “O aprimoramento da educação jurídica no Brasil foi uma das principais bandeiras levantadas pela OAB ao longo dessa gestão e o Fórum Nacional de Educação Jurídica – Região Sul, propiciará não só a continuidade dos debates, mas, principalmente, o aprofundamento na discussão de temas atuais e de enfrentamento tão premente, sob uma ótica interdisciplinar e cultural. O tema não pode ser tratado com negligência. Precisamos pensar soluções efetivas para o atual cenário de precarização do ensino jurídico no Brasil”, frisa Rios.